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quarta-feira, 29 de outubro de 2008

TRANSTEXTUALIDADES: Seminário com André Gomes



André Gomes foi o artista convidado para apresentar o seu trabalho durante a aula do Mestrado em Pintura (FBAUL), Transtextualidades. De facto o seu percurso não podia deixar de ser apresentado no âmbito desta disciplina, já que a actividade deste artista, embora se centre na fotografia (enquanto suporte), toca áreas tão diversas como a literatura, o teatro, o cinema e a pintura. Constitui, de facto, o que nos foi dito pela Professora Isabel Sabino acerca do termo "Transtextualidades": uma travessia entre várias áreas, entre várias formas de "texto".

Formado em Filosofia pela Universidade de Lisboa, a sua actividade enquanto artista e actor teve início na década de 80. Como o próprio afirmou: "Não sei pintar, não sei desenhar nem escrever (...) fui parar aos palcos e descobri a Polaroid". É este o meio de expressão com que começou a trabalhar e que continua a usar até hoje, não se identificando com nenhum do aparato que por vezes observa nos fotógrafos, na verdadeira acepção do termo: "Vi um fotógrafo na rua; parecia uma espécie de cabide de todo aquele aparato fotográfico. (...) A Polaroid é um todo-o-terreno; não precisa de nada (...); é imediata como o caos de sensações e emoções desta necessidade de expressar que me habita".

Os filmes de Akira Kurosawa, as imagens transmitidas pela CNN, a Guerra do Golfo e a pintura dos “Grandes Mestres”, constituíram o mote para o início de um percurso brilhante: "Apeteceu-me fugir para as paisagens serenas da pintura tardo-medieval (...). A primeira vez que trabalhei com pintura foi para expressar o horror que sentia face à guerra, o terror pelo predomínio da imagem audiovisual (...). Pensei em como poderia enfrentar as imagens televisivas e no que elas despertavam em mim. Como no filme de Kurosawa, saltei para dentro da pintura. Sentia-me tão infeliz com o momento que se vivia que quis voltar aos locais onde tinha sido feliz; uma espécie de paraíso revisitado. (...) Será possível regressar à pintura?".

O processo de construção "pictórica" adoptado por este artista revelou-se bastante curioso. André Gomes começou a fotografar as montagens que construia com as imagens televisivas, baseando-se em temas da pintura: "Polaroids de assemblages". Procurava, assim, uma tensão entre a fotografia e a pintura dos antigos mestres. As obras finais são sempre ampliações das Polaroids (algumas com cerca de 100x80 cm). O artista afirmou que as qualidades e defeitos da Polaroid, ao serem ampliados, ganham uma dimensão de "pathos": "O que eu gosto na Polaroid é este lado de esboço, de registo rápido de uma ideia. (...) A ideia intervém a partir de uma urgência do presente, o horror da guerra".

Segundo o artista, em Santo António de Bagdad os episódios da guerra transformam-se numa espécie de ascese mitológica. André Gomes vê este tríptico como sendo a "cozinha" do seu trabalho: "Falo em cozinha porque uma das peças mais importantes desta exposição foi A Cozinha dos Anjos". Neste retábulo constituído por quatro fotografias o artista, representado, salta efectivamente para dentro da pintura; tal como descreveu, a fome de uma certa transcendência fê-lo saltar para dentro desta cozinha mística: "Mergulho na pintura devido à urgência do presente".

A peça desenvolve-se como "um desenho de fotografias" em que é a própria montagem que lhe dá uma dimensão narrativa: "Os meus trabalhos são sempre retábulos. São a procura daquilo onde nunca se chega, um labirinto infinito. As minhas fotografias raramente são uma só. A composição final surge através de uma articulação coerente e harmoniosa das imagens. (...) Eu não sou fotógrafo; o que projecto é sempre uma subjectividade absoluta (...). A minha imagem é constituída por um milhão de emoções. Uma imagem deve ser a construção articulada de diversos estados de espírito e pontos de vista; como se estivesse sempre a mudar de objectiva, mas no meu caso, as objectivas são os meus estados de alma".

O corpo de trabalho deste artista é extremamente ambíguo em termos formais. Tal como afirmou: "No mistério da arte confundem-se todas as artes". E isso agrada-lhe, chegando a confessar que gostou quando um conhecido, ao apresenta-lo, hesitou entre "um fotógrafo de pinturas" e "um pintor de fotografias".

"Nestas confusões, na mistura dos temas, encontra-se o cerne do meu trabalho. É também importante a violência a que sujeito as Polaroids."

 André Gomes prossegue: "A minha ligação com a pintura tem vindo a intensificar-se. Deixei de tirar e citar pintura; passei a trabalhar na atmosfera da pintura. Progressivamente, autonomizei-me em relação à citação da pintura". Exemplo disso é o trabalho que apresentará em Março, no CCB, onde se nota uma maior liberdade e abstracção, no qual as fontes usadas não são imediatamente identificáveis, mas não posso alongar-me em explicações sobre essa futura apresentação, já que o artista pediu sigilo. A par de Luís Palma e Edgar Martins, André Gomes é um dos nomeados para o prémio BESphoto deste ano.

"O meu trabalho é cada vez mais autónomo, está cada vez mais longe da citação, mas eu estou sempre a pensar numa pintura. A obra mantém a emoção e maravilhamento que sinto quando vejo certas pinturas."

 Macha (título que surgiu da peça de teatro A Gaivota) foi a exposição que lhe deu a nomeação para o prémio BESphoto: "Vi a peça no Teatro Cornucópia e encantou-me. Quis falar do que era referido mas que não era representado; o nevoeiro, o jardim. (...) É uma peça em que a tragédia se vai instalando a pouco e pouco. (...) Convidei a actriz Teresa Sobral para posar para mim e pude fotografar paisagens imaginárias; fotografar o negro, o escuro do silêncio. (...) Ao fazer este trabalho pensei sempre num pintor Francês quase desconhecido, um dos mais requintados simbolistas. Interessa-me este seu retrato; a paisagem, a cidade como pensamentos. É a cidade da sua memória que o abriga. Paisagem e pensamento são o retrato de um estado de alma. (...) Os seus pensamentos confundem-se com os lugares que percorre. A paisagem habita-o por dentro".

"No meu trabalho, tal como no cinema, é a montagem que faz a mensagem. Através de retábulos eu conto realmente a história de Macha. (...) Quero sempre a situação mais difícil de criar... fotografar pensamentos. O conjunto de imagens mostra o que ela sente; inquietação, angústia".

É de uma recolha caótica que André Gomes parte para a selecção e montagem das imagens depois, "é ver se o texto surge".

Partindo do cinzento das núvens, a casa, o lago, o vermelho do fogo e do rosto da personagem, e terminando no amarelo absoluto, "espelho da imagem ausente", Macha surge como o corpo de trabalho que o artista considera mais conseguido.

Durante a apresentação André Gomes mostrou também A Invenção da Cruz, que expôs no Museu de História Natural, na Sala do Veado, em 1993: "Quis fazer, com a fotografia, um calvário (...). Foi um grande desafio". A obra do pintor Luís Morales, que juntava o lado místico com uma certa sensualidade nos Cristos que representava, deu origem à construção da cruz durante a montagem da exposição.

Impressionou-me a humildade deste artista, que ao apresentar Era na Velha Casa, obra que desenvolveu a pensar na Ode Marítima de Álvaro de Campos, e que foi apresentada recentemente na EDP, confessou ter considerado que havia sido uma exposição pouco conseguida, pois esquecera-se de colocar a "pontuação" (sendo que por pontuação entende-se o espaço de que as imagens precisam entre si para respirar). Refiro isto porque considerei esta afirmação de uma enorme honestidade, e tal nem sempre acontece.

André Gomes revelou-se um artista carismático, extremamente acessível e com muito sentido de humor ("Em Setembro de 2009 acaba a Polaroid e eu devo ir para debaixo da ponte" ou "A única vez que pintei deve ter sido no Liceu Gil Vicente, nas aulas de trabalhos manuais", revelam a boa disposição que se fez sentir nesta apresentação ). Bem... em relação ao fim da Polaroid, quando lá chegarmos, posso pensar em doar-lhe o stock de cartuchos que guardo religiosamente no frigorífico. Ficarão, certamente, bem entregues!

Gostei muito desta primeira apresentação que espero ser a primeira de muitas outras que se seguirão. O texto já vai longo, eu sei, mas tinha muitas ideias para arrumar...

Nota: Todas as citações presentes neste texto surgiram de apontamentos retirados durante esta conversa informal com o artista.

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